18 novembro 2010

O dia em que eu ia matando o Duarte (ou Um Susto do Caraças, que sempre soa mais a título de filme cómico)

Para mim era uma manhã como quase todas as outras em Lisboa: era demasiado cedo para estar na rua.
O Duarte ia apanhar um avião para a Alemanha e tinha-me pedido para o levar, a ele e ao Vicente, ao aeroporto. E eu, que sou demasiado boa pessoa (cof) e que tenho pouco que fazer, lá me apresentei à porta de sua casa às 8h30 da manhã, ainda com os olhos meio semi-cerrados.

O problema é que o Duarte tem uma 'Vespa' que não queria deixar à chuva e à mercê dos maganos lisboetas durante uma semana inteira. Mas, porque não tem garagem no seu prédio, ficou combinado que iríamos primeiro deixar a mota na garagem de uma amiga dele antes de rumarmos à Portela. Assim, o Duarte iria à frente na Vespa, e eu e o Vicente iríamos segui-lo no meu carro (que, já agora, não tem nada de meu. A não ser talvez a fenda no retrovisor esquerdo.)

Pois que às tantas chegámos ali ao Campo Grande, onde antes de passarmos o Bingo (ah, tiremos um momento para reflectir na bela instituição que é o Bingo do Campo Grande!) há um cruzamento que junta a rua-que-eu-não-sei-como-se-chama-mas-que-é-paralela-à-Segunda-Circular (onde íamos nós) com a outra-rua-que-eu-não-sei-como-se-chama-mas-que-contorna-o-Estádio-de-Alvalade-pela-esquerda-e-vai-em-direcção-ao-Campo-Grande.

Pronto, um pequeno recurso à tecnologia para fazer uma contextualização geográfica da situação:

 (eu e o Vicente somos a setinha amarela, o Duarte a azul, e os carros da rua à nossa direita a vermelha)

O nosso semáforo estava verde quando entrámos na rua, mas quando o Duarte se estava a aproximar do cruzamento passou a amarelo. O meu pensamento automático foi "ele está demasiado perto do semáforo para travar, ainda por cima o piso está molhado, ele vai passar o amarelo e eu também". E durante uns 2 segundos pareceu-me até que ele tinha acelerado - talvez por sugestão do meu inconsciente, não sei (com o choque do que se passou a seguir acabei por nunca discutir com ele os pormenores).

Mas ele travou. Talvez porque sabia que eu o estava a seguir e que não sabia o caminho para casa da sua amiga, provavelmente porque pensou que eu não ia ter tempo de passar também o amarelo, o Duarte travou a fundo mesmo em cima da linha do semáforo.

O que se passou a seguir pode ser considerado por alguns intervenção divina; para outros, foi uma sorte do caraças. Eu não sei. Para mim foi fruto de uma enorme injecção de adrenalina, que se traduziu numa maior e inesperada rapidez dos meus reflexos. Todos os factores estavam contra nós: era de manhã cedo, eu ainda não tinha tomado pequeno almoço nem tão-pouco bebido café, o piso estava molhado. Mas, mais do que tudo o resto, eu estava naquele momento dentro de um carro em movimento, em cuja rota de colisão se encontrava, a pouquíssima distância de mim e cada vez mais perto, um dos meus melhores amigos sentado em cima de uma Vespa, tão frágil perante o meu carro como o próprio animal que lhe dá nome perante um bisonte. O Duarte estava de costas, claro, e por isso sem qualquer noção do que estava nas minhas mãos e dependente desses dois segundos.

É impressionante como tudo pode mudar em dois segundos.

Um.

Dois.

Ainda hoje não sei como fiz aquilo. Se calhar foi mesmo intervenção divina - não por mim, que vou directa para o inferno sem passar na casa da partida, mas pelo Duarte, que é realmente uma boa pessoa e tem deus do seu lado (ou pelo menos trabalha para isso). Não sei como o fiz, mas naqueles dois segundos vi, para meu enorme horror, que o Duarte afinal tinha travado e que estava parado à minha frente. E apesar de irmos a uma velocidade perfeitamente normal, tive apenas o tempo e a capacidade de travar a fundo e de, ao aperceber-me no último segundo -com ainda mais horror- de que a distância era demasiado curta e de que iríamos chocar à mesma, virar o volante para a minha esquerda o suficiente para o meu farol direito ficar a três centímetros -literalmente três centímetros- da sua roda traseira.

Nesse momento o semáforo da rua à nossa direita ficou verde e os carros (aqueles da setinha azul lá de cima) avançaram em grande velocidade, como é habitual nesse cruzamento, em direcção ao Campo Grande.
Ou seja: se eu não tivesse tido atenção, presença de espírito, protecção divina ou seja lá o que for, tinha chocado contra a vespa do Duarte, ele tinha sido projectado para a frente, e provavelmente teria sido atropelado pelos carros que entretanto avançaram da nossa direita (que quase seguramente não teriam tido tempo de se aperceber da situação).


Não tenho com isto qualquer tipo de motivação moralista; não vou dizer para terem muito cuidado, para terem uma condução defensiva, ou para aprenderem com os meus erros. Não tenho moral nem idade para isso. Mas a verdade é que nunca estamos à espera de que estas merdas nos aconteçam. Achamos sempre que somos mais fortes, mais capazes, mais inteligentes do que os outros que fazem asneira. Passamos por eles e se for preciso rimos arrogantemente das suas inferioridades. Mas, no final do dia, somos todos pequenas criaturas a quem podem tirar o tapete de debaixo dos pés, quase sem que nos demos conta do como nem do porquê.

Um.

Dois.

É quanto basta.

6 comentários:

  1. 1 - deus com letra minúscula, sim senhor. só faltou o z.

    2 - ninguém nos tira o tapete de debaixo dos pés. somos nós que escorregamos de cima dele.

    3 - aquela merda não é uma fenda.
    uma fenda é provocada por um fuinho na paêde, ou coisa que o valha.
    aquela merda é o grand canyon dos retrovisores.

    4 - foi os que os espanhós mamaram ontem

    5 - :)

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  2. Eu acho que há muito tempo que não lia uma coisa tão excitante. Isto é melhor do que ler Dan Brown. Devias ir para a TVI. Eu por alguns momentos pensei: O DUARTE VAI FALECER!!!!

    Bravo...

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  3. "Um susto do caraças" é filme cómico.

    "Um susto do *******" é filme de mitra!

    Tenho dito!

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  4. epá, e por falar em Vicente, lembrei-me agora de um episódio passado no meu ano de erasmus, em que numa festa, quando um dos convivas francês chegou, apercebi-me de que ele se chamava Vincent.
    claro que passei o tempo todo a gritar-lhe (sendo que alguém, para aí à 4ª vez, lhe traduziu o pregão e ele não levou a mal):

    OH BICENTE, MOSTRÁ PILÁ GENTE!

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  5. Adorei esta. E o dramatismo de ele levar com o teu carro apenas para depois ser atropelado por 200carros dá um toque mágico à coisa.

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  6. o texto é arrepiante...
    e o suspense em crescendo dava um bom inicio de um episódio de " 7 palmos de terra"!!!

    felizmente a história acabou bem... a ajuda divina estava lá...

    p.s. o que disse o Duarte do texto ? para além de ter perdido a oportunidade de se tornar o protagonista de um episódio dos "7 palmos de terra" ?
    bjs
    B.

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