25 abril 2014

39+1

Há exactamente um ano atrás eu e o Carneiro queríamos encontrar um sítio onde pudéssemos conversar calmamente mas que ao mesmo tempo nos permitisse aproveitar Lisboa numa tarde de sol. Depois de passarmos pelo Carmo e de comprarmos cravos vermelhos na rua (que é como deve ser), lembrámo-nos de que o Castelo tem entrada grátis para moradores de Lisboa.

Nunca ocorre a ninguém ir simplesmente passear ao Castelo, acho eu. Vai-se ao Castelo para mostrar Lisboa aos amigos turistas, vai-se ao Castelo em visita de estudo, entra-se no Castelo especificamente para ir ao museu, mas nunca ninguém se lembra de ir só ao Castelo. Ir ao Castelo. Como quem vai passear ao Terreiro do Paço ou como quem passa no Santini para comprar um gelado.

E então fomos - pela primeira vez, fomos 'só' ao Castelo. E lá nos sentámos, junto às muralhas, a aproveitar o sol e a vista para a cidade, a conversar sobre os temas que nesse dia eram prementes.

Alguma vez ouviram Lisboa num feriado? Lisboa estava longe de estar deserta, mas parecia há um ano atrás quase solene de silenciosa. Não se ouvia nada a não ser um que outro murmúrio de turistas italianos que iam passando atrás de nós e os passarinhos (quão cliché) em pano de fundo. Parecia domingo de manhã.

Mas dos confins da cidade começou a soar-nos uma melodia conhecida. Vagamente, ao longe, mas cada vez mais nítida. Nada visível por entre a vista distante de edifícios e arvoredo, mas a multidão, os milhares de pessoas que nesse dia desciam a Avenida da Liberdade em manifestação, tinham chegado aos Restauradores. E a aproximação ao cotovelo da Praça do Rossio e a exposição directa às ameias do Castelo permitiram que o vento de Abril trouxesse até nós, incrédulos, pasmados, o murmúrio de uma multidão a cantar a "Grândola Vila Morena" por cima de uma cidade que se ouvia deserta.

Nada mais era visível ou audível, nada tinha mudado - a paisagem que se estendia colina abaixo era a mesma, as pessoas continuavam desaparecidas da rua, e o rio daquele azul brilhante que é só de Lisboa com sol. Tudo igual ao momento imediatamente anterior. Mas um som vibrante de vozes emocionadas e tambores a bater o tempo erguia-se da cidade, cada vez mais forte, como se alguém tivesse ligado altifalantes algures na muralha.

Lisboa antes muda, domingo de manhã numa quinta feira à tarde, vista das ameias do Castelo e banhada em sol de primavera, soava ali, para nós sozinhos, a Zeca Afonso.

Não vimos a multidão, por isso posso assumir que a cidade cantou sozinha naquele dia. Assumo que o som saiu das pedras da calçada e que se elevou pelos telhados da Baixa só porque urgia relembrar a cidade de há 39 anos atrás.

Naquele dia o Castelo foi espectador único daquele tributo tão inesperadamente íntimo, um dos mais bonitos que tive a honra de testemunhar enquanto lisboeta. Abril cantado pela cidade, para a cidade. Hoje, a 2800 kms do Rossio, resta-me comprar cravos vermelhos e continuar a escrever.