15 fevereiro 2011

Cartao Dominó

Estava ontem a estudar na biblioteca, já naquela fase do desespero em que só de olhar para os livros já me parto a rir sozinha, quando caiu em mim uma verdade incontestável: o tempo em que a Blitz ainda era O Blitz era muito mais fácil. Era um tempo de aulas invariavelmente das 8h30 às 13h30, de senhas da cantina e de jogos de futebol no pátio. Era um tempo em que eu já chegava 20 minutos atrasada às aulas, mas em que a culpa ainda era da minha mãe e não minha. Era tempo de dizer "Bom dia stora!" quando entrava na sala, de a atravessar com calma apesar da aula já estar a decorrer, de me ir sentar no meu lugar de sempre, ao lado das pessoas de sempre, com tempo ainda para distribuir um ou dois 'hi fives' a quem me rodeava antes do rabo tocar na cadeira.

Era um tempo em que os professores sabiam os nossos nomes, e em que os números de aluno tinham apenas um digito e nao seis. Um tempo de lugares marcados, de faltas de material e de sacos de educaçao física recheados de sapatilhas e de roupa mal cheirosa. Tempo de me chamarem "ressacada" apenas porque chegava com cara de sono às aulas. Tempo de ler 'O Senhor dos Aneis' pela primeira vez, numa sala onde passava a Rádio Cidade e onde as pessoas jogavam matraquilhos sem garrafas de cerveja nem cinzeiros sujos à vista. Tempo de adorar os dias de reunião de pais por serem os dias em que podíamos ficar todos juntos no recreio até muito perto da hora de fecho da escola. Tempo de viver intensamente a excitação que antecipava uma festa de anos, principalmente quando envolvia dormirmos todos em casa de um de nós. Tempo de jogar ao 'Verdade ou Consequência' com um nervosinho no estômago. Tempo de sair da escola à socapa para fumar os primeiros cigarros. Tempo de comprar a 'Bravo'. Tempo de 'mandar toques' como principal forma de comunicação.

Era um tempo em que ainda se ligava para casa, e em que se passavam duas horas ao telefone com a melhor amiga dia sim dia não. Um tempo de conversas de meninas em que se discutia clandestinamente o que seria afinal um orgasmo. Tempo em que amizade significava trocar as capas coloridas dos Nokia 3310. Tempo em que dar linguados era uma ousadia. Tempo de ter cadernos do Harry Potter. Tempo de ficar duas horas na fila do Garage às 6as feiras à noite, e depois esperar pela boleia dos pais à porta. Tempo em que a palavra 'forever' nao era foleira mas sim essencial.

Tempo de passar bilhetinhos nas aulas (no nosso caso folhas A4 escritas até ao ultimo cm2) e tempo de irmos todos almoçar ao AC Santos e de cada um comprar um pão, uma fatia de queijo e outra de mortadela. Tempo em que loucura era roubar vernizes na loja do chinês. Tempo de comprar exactamente 0.50€ em gomas na Chequiná. Tempo de pedir pensos higiénicos à 'contina', porque nos veio 'a chica' e nao estávamos à espera. Tempo de ter notas de 1 a 5 e de ficar triste quando se recebia um 'Satisfaz'. Tempo de levar recados na caderneta. Tempo de aprender a jogar Copas e de fazer visitas de estudo em que a parte mais fixe era irmos todos juntos na camioneta (quanto mais longe melhor). Tempo de dizer 'buedá fixe' e de escrever com k's. Tempo de sentir o terror de ser a última escolhida para as equipas de futebol nas aulas de Educação Física, mas de pular de contentamento quando alguém informava que "hoje é basquet". Tempo de ouvir Silence 4 nas aulas de EVT.

Tempo em que os pais divorciados eram menos do que os pais casados. Tempo em que sair das aulas às 18h30 era deprimente. Tempo de começar a gostar de andar no Gregoriano. Tempo em que a decisão mais importante que se avizinhava nas nossas vidas era escolher para que área se ia no Secundàrio. Tempo de ler e reler o 'Viagem ao Mundo da Droga'. Tempo de sentir que aqueles só podiam ser os melhores anos das nossas vidas. Tempo de "morrer na praia" com um 49%, tempo de chamar "Vaca Aurora" à prof. de Matemática e de fazer os TPC's de inglês na própria aula. Tempo de sentir que as aulas serviam mais para estarmos juntos do que para outra coisa. Tempo de provas de aferição e de testes psicotécnicos. Tempo de entrar na biblioteca da escola apenas para requisitar livros da colecção 'Uma Aventura'. Tempo de ler 'Calvin' aos sábados de manha.

Era tempo de ler um livro em que um estudante universitário dizia 'Nunca me disseram que para andar na Faculdade era preciso ler tanta coisa!' e pensar que era de certeza um exagero. Tempo de só ter "amigos" e não "colegas". Tempo de ir ao cinema à tarde e em grupo (ao Londres, sempre ao Londres) e tempo de acreditar que o Cinema Alvalade ainda ia acabar de ser construido antes de nós acabarmos o 9° ano. Tempo de viajar no banco de trás do carro e de esperar junto ao rádio para gravar as músicas preferidas numa cassete (músicas que ficavam invariavelmente sem os primeiros 5 ou 6 segundos). Tempo de sonhar alto e sem pressa, por saber que a vida estava aí a caminho. Tempo de fazer amigos que nessa altura ainda não sabíamos que iam ser para a vida. Tempo de não ter liberdade, não ter autonomia, não ter namorado e não ter dinheiro próprio, mas ainda assim ser incontestavelmente feliz.

Tempo de chamar toda a gente por diminutivos. Tempo de ler O Blitz nas aulas com o Rú, o G, a Fifi, o Dé e a Nês. Os tais que afinal foram para a vida.

Quem não andou na Eugénio é um ovo podre.

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